A afirmação de que os contratos são elaborados para serem respeitados não causa perplexidade ou estranheza a ninguém. O alarde, no entanto, consiste na possibilidade de reprimenda não só àquele que descumpre o acordo de vontades como àquele que instiga o inadimplemento contratual. O terceiro causador de abalo em uma relação contratual que dela não participa pode vir a ser responsabilizado civilmente. Ao menos essa é a teoria do “terceiro cúmplice”, que gradativamente vem sendo aplicada pelos Tribunais e discutida pela doutrina.
A ideia de responsabilização de um terceiro pelo rompimento de um contrato do qual não é parte pode causar certa surpresa; afinal, por não ter participado do pacto, as normas que o regem não poderiam ser opostas em face desse agente. Como, então, imputar a ele responsabilidade pelo desfazimento de um contrato do qual não participou?
A resposta para a doutrina chamada pela common law de tortious interference é simples: uma vez que os contratos são elaborados para serem respeitados, ações que os desvirtuem ou os encaminhem para o desenlace devem ser rechaçadas. Dessa forma, podem ser responsabilizados não somente as partes contratualmente vinculadas, como aqueles que de alguma forma contribuam para sua distorção. A linha de conduta contratual, portanto, passaria a ser oposta a pessoas que nem sequer firmaram o acordo, tudo para que fosse resguardada a expectativa contratual.
Para melhor ilustrar, imaginemos que, almejando expandir seu público consumidor, o dono de um desconhecido posto de combustível deseja exibir a bandeira de renomada empresa do ramo. Para tanto, contata a futura parceira e juntos optam por firmar um contrato no qual o empresário se compromete a, além de pagar uma determinada quantia mensal, adquirir gasolina e álcool apenas e tão-somente da empresa parceira. Essa condição, inclusive, é imprescindível para que haja a manutenção dos padrões de qualidade da companhia cujo símbolo é exibido. Em um determinado momento, no entanto, outra fornecedora passa a oferecer preços mais vantajosos ao proprietário do posto, e, tentado pela ganância, o comerciante aceita a proposta. Ao comprar combustível de um concorrente, o dono do posto afronta a cláusula de exclusividade que mantinha. Diante desse descumprimento voluntário, mas instigado, a teoria do terceiro cúmplice aponta que tanto o dono do posto quanto o concorrente que lhe seduziu poderiam ser responsabilizados pelos danos advindos da quebra do contrato pré-existente.
A responsabilização do terceiro estaria fincada, então, em conduta visivelmente maliciosa, caracterizada pelo auxílio ao descumprimento de pacto do qual não é parte, para nova contratação cujo conteúdo é incompatível com o pré-existente. Essa articulação entre terceiro que interfere em relação contratual alheia para se valer de algum benefício e a parte diretamente responsável pelo rompimento contratual seria condenável, pois, embora o terceiro desconhecesse as condições do contrato firmado entre dono do posto e a empresa de combustível, por atuar na área, era de se esperar que soubesse da existência de vínculo de exclusividade. Ademais, não fosse a inoportuna proposta incitando o rompimento do vínculo contratual, o pacto anteriormente firmado permaneceria estável e a expectativa e a confiança intrínsecas à relação anterior permaneceriam inabaladas.
A mesmíssima lógica pode ser constatada quando, vendo o crescimento da audiência de determinado talk show, por se tratar de formato facilmente transportável para outro canal, a emissora concorrente decide oferecer para todos seus integrantes contratos mais longos e mais bem remunerados, incitando o elenco do programa a aceitar a proposta. Vê-se que a atuação da rival é fundamental para que haja a migração do casting. O proveito da proposta para aquele que a faz e para os que a aceitam salta aos olhos, assim como o prejuízo daquele que vê sua atração se esfacelar. Também nesse exemplo, caso aplicada a doutrina do terceiro cúmplice, poderia haver responsabilização daqueles que de alguma forma contribuíram para o término do contrato.
No entanto, ressalva-se, desde logo, que a doutrina do terceiro cúmplice, embora não seja nova, carece de melhor sistematização pela doutrina e pelos Tribunais pátrios. Apesar de já aceita e atualmente fundada no princípio da função social do contrato (artigo 421 do Código Civil), seu acolhimento remanesce incerto e imprevisível, pois sua aplicação contraria alguns dogmas da teoria contratual fortemente enraizados, tal como a eficácia subjetiva do contrato, sendo compreensível a estranheza que a tese costuma causar num primeiro momento.
Em síntese, cumpre ter em mente que, adotando-se a teoria do terceiro cúmplice, terceiros não podem prejudicar relações contratuais das quais não são parte mas possuem ou teriam condições de ter mínima ciência, sob pena de serem civilmente responsabilizados.
Fonte: Administradores – Acesso em 11/08/2014 – http://goo.gl/wPrrg9